CALVARIO



E subitamente todo o tropel devoto se atirou de rojo, ululando, carpindo, gemendo, flagelando os peitos, clamando pelo Senhor, lúgubre e delirante. Estávamos sobre a pedra do Calvário.

CAPAS





NOSSA SENHORA DO PATROCÍNIO


Pus mais flores sobre a cómoda diante de Nossa Senhora do Patrocínio, contei-lhe as angustias do meu coração. Por trás do límpido vidro do seu caixilho, com os olhos baixos e magoados, ela foi a confidente do tormento da minha carne; e todas as noites, em ceroulas, antes de me deitar, eu lhe segredava, com ardor.
- Ó minha querida Senhora do Patrocínio, faz que a Adelinha goste outra vez de mim!

ESCORRAÇADO A VASSOURA


Donzela, e velha, e ressequida como um galho de sarmento; não tendo jamais provado na lívida pele senão os bigodes do Comendador G. Godinho, paternais e grisalhos; resmungando incessantemente, diante de Cristo nu, essas jaculatórias das horas de piedade, soluçantes de amor divino, a Titi entranhara-se, pouco a pouco, de um rancor invejoso e amargo a todas as formas e a todas as graças do amor humano. (...) E quase todos os dias, com os dentes rilhados, repetia (referindo-se a mim) que se uma pessoa do seu sangue, e que comesse o seu pão, andasse atrás de saias, ou se desse a relaxações, havia de ir para a rua, escorraçado a vassoura, como um cão.

JAFA


- Jafa! - gritou-me Topsius, sacudindo o seu cachimbo de louça. - Aí tem o D. Raposo a mais antiga cidade da Ásia, a velhíssima Jepo, anterior ao dilúvio! Tire o barrete, saúde essa anciã dos tempos, cheia de lenda e de história... Foi aqui que o borrachíssimo Noé construiu a sua arca!
Cortejei, assombrado.
- Caramba! Ainda agora a gente chega, já lhe começam a aparecer cousas de religião!

JUNTO A UM ALTAR


Junto de um altar apartei dous gordos sacristães, um grego, outro latino, que se tratavam furiosamente de birbantes, esbraseados, cheirando a cebola;

18 - PONTAPÉS NO RABO


Não resisti; descalço, em ceroulas, saí ao corredor adormecido; e cravei à fechadura da sua porta um olho tão esbugalhado, tão ardente - que quase receava feri-la com a devorante chama do seu raio sangüíneo... (...) E assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ela atravessasse, nua e esplêndida, nesse disco escasso de luz, quando senti de repente, por trás, uma porta ranger, um clarão banhar a parede. Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão!


E eu, misérrimo Raposo, não podia escapar. De um lado estava ele, enorme. Do outro, o topo do corredor, maciço.
Vagarosamente, calado, com método, o Hércules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas... Eu rugi: "bruto!" Ele ciciou: "silêncio!" E outra vez, tendo-me ali acercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nádegas, canelas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranqüilamente, apanhou o seu castiçal.

pg99-100

12 - O SONHO DO RAPOSÃO


Dous dias e duas noites o Caimão arquejou e rolou nos vagalhões do Mar de Tiro.(...)
Mas uma tarde, ao escurecer, tendo cerrado os olhos, pareceu-me sentir sob as chinelas um chão firme, chão de rocha, onde cheirava a rosmaninho; e achei-me incompreensivelmente a subir uma colina agreste de companhia com a Adélia, e com a minha loura Mary; que saíra de dentro do embrulho, fresca, nítida, sem ter sequer amarrotado as papoulas do seu chapéu!


Depois, por trás de um penedo, surgiu-nos um homem nu, colossal, tisnado, de cornos; os seus olhos reluziam, vermelhos como vidros redondos de lanternas; e, com o rabo infindável, ia fazendo no chão o rumor de uma cobra irritada que roja por folhas secas. Sem nos cortejar, impudentemente, pôs-se a marchar ao nosso lado. Eu percebi bem que era o diabo; mas não senti escrúpulos, nem terror. A insaciável Adélia atirava olhadelas oblíquas à potência dos seus músculos. Eu dizia-lhe, indignado: "Porca, até te serve o diabo?"
Assim marchando, chegamos ao alto do monte, onde uma palmeira se desgrenhava sobre um abismo cheio de mudez e de treva. Defronte de nós, muito longe, o céu desdobrava-se como um vasto estofo amarelo; e sobre esse fundo vivo, cor de gema de ovo, destacava um negríssimo outeiro, tendo cravadas no alto três cruzinhas em linha, finas e de um só traço. O diabo, depois de escarrar, murmurou, travando-me da manga: "A do meio é a de Jesus, filho de José, a quem também chamam o Cristo; e chegamos a tempo para saborear a Ascensão".

A PARTIDA



A minha mala nova de couro, o meu repleto saco de lona enchiam o cupê do Pingalho. Ainda as andorinhas retardadas cantavam no beiral dos telhados; na capela de Santana tocava para a missa. E um raio de sol, vindo do Oriente, vindo lá da Palestina ao meu encontro, banhou-me a face, acolhedor e risonho, como uma carícia do Senhor.
Fechei a tipóia, estirei-me, gritei: "Larga, Pingalho!"
E, romeiro abastado, soprando à brisa o fumo do meu cigarro, assim deixei o portão de minha tia, em caminho para Jerusalém!

JERUSALÉM



E uma inquietação engolfou-se em minha alma, como um vento triste numa ruína... Eu ia avistar Jerusalém! Mas - qual? Seria a mesma que vira um dia, resplandecendo suntuosamente ao sol de Nizam, com as torres formidáveis, o templo cor de ouro e cor de neve, Acra cheia de palácios, Bezeta regada pelas águas de Enrogel?...
- El-Kurds! El-Kurds! - gritou o velho beduíno, com a lança no ar, anunciando pela sua alcunha muçulmana a cidade do Senhor.
Galopei, a tremer... E logo a vi, lá embaixo, junto à ravina do Cédron, sombria, atulhada de conventos e agachada nas suas muralhas caducas - como uma pobre, coberta de piolhos, que para morrer se embrulha a um canto nos farrapos do seu mantéu.

pg 215-216

A CRUCIFICAÇÃO


Espavorido, puxei a capa do douto Topsius - e cortamos pelas urzes até ao alto, onde se apinhavam, olhando e galrando, obreiros das oficinas de Garebe, serventes do templo, vendilhões, e alguns desses sacerdotes miseráveis e em farrapos, que vivem de nigromancia e de esmolas.(...)
Então, ansioso, ergui os olhos... Ergui os olhos para a cruz mais alta, cravada com cunhas numa fenda de rocha. O Rabi agonizava. E aquele corpo que não era de marfim nem de prata, e que arquejava, vivo, quente, atado e pregado a um madeiro, com um pano velho na cinta, um travessão passado entre as pernas - encheu-me de terror e de espanto...

JERUSALEM (vista do sonho)


Subitamente, Topsius parara, abria os braços; eu também; e com o coração suspenso ali ficamos imóveis, deslumbrados, vendo lá embaixo, na luz, resplandecer Jerusalém.
O sol banhava-a, suntuosamente! Uma severa altiva muralha, guarnecida de torres novas, com portas onde as cantarias se entremeavam de lavores de ouro, erguia-se sobre a ribanceira escarpada do Cédron, já seco pelos calores de Nizam, e ia correndo, cingindo Sião, para o lado de Hínon e até aos cerros de Garebe. E, dentro, em face aos cedros que nos assombreavam, o templo, sobre os seus alicerces eternos, parecia dominar toda a Judéia, soberbo em esplendor, murado de granitos polidos, armado de bastiões de mármore, como a refulgente cidadela de um deus!...

pg 131

16 - ENTRADA NO SANTO SEPULCRO



Calcei então as minhas luvas pretas. E imediatamente, um bando voraz de homens sórdidos envolveu-nos com alarido, oferecendo relíquias, rosários, cruzes, escapulários, bocadinhos de tábuas aplainadas por São José, medalhas, bentinhos, frasquinhos de água do Jordão, círios, agnus-dei, litografias da Paixão, flores de papel feitas em Nazaré, pedras benzidas, caroços de azeitona do Monte Olivete, e túnicas "como usava a Virgem Maria!" E à porta do sepulcro de Cristo, onde a Titi me recomendara que entrasse de rastos, gemendo e rezando a coroa - tive de esmurrar um malandrão de barbas de eremita, que se dependurara da minha rabona, faminto, rábido, ganindo que lhe comprássemos boquilhas feitas de um pedaço da arca de Noé!
- Irra, caramba, larga-me, animal!

pg 94-5

UM RASGO DE PAIXÃO


Mas Alpedrinha, da beira do leito, gritava alvoroçado:
-Cavalheiro! Ainda há aqui roupa suja!
Rebuscando entre os cobertores revoltos, descobrira uma longa camisa de rendas, com laços de seda clara. Sacudia-a; e espalhava-se um aroma saudoso de violeta e de amor... Ai! Era a camisa de dormir da Mary, quente ainda dos meus abraços!
- Pertence à senhora D. Mary! É a tua camisinha, amor!- gemi eu, cruzando os suspensórios.


A minha luveirinha ergueu-se, trémula, descorada - e teve um poético rasgo de paixão. Enrolou a sua camisinha, atirou-me para os braços, tão ardentemente como se entre as dobras viesse também o seu coração.
- Dou-ta, Teodorico! Leva-a, Teodorico! Ainda está amarrotada da nossa ternura!... Leva-a para dormires com ela a teu lado, como se fosse comigo...

SÓ NA RUA E NA VIDA



Mal transpus o pátio, a Vicência, cumprindo as ordens sanhudas da Titi, bateu-me nas costas com o portão chapeado de ferro
- desprezivelmente e para sempre!
Estava só na rua e na vida! À luz dos frios astros contei na palma o meu dinheiro. Tinha duas libras, dezoito tostões, um duro espanhol e cobres... E então descobri que a caixa, apanhada tontamente entre as malas, era a das relíquias menores. Complicado sarcasmo do destino!

EM COIMBRA


Passei então para a divertida hospedagem das Pimentas, e conheci logo, sem moderação, todas as independências, e as fortes delicias da vida. Nunca mais rosnei a delambida oração a São Luís Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta que usasse auréola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camelas; afirmei a minha robustez, esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carme com saborosos amores no Terreiro da Erva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão.

NO COLÉGIO


Apenas completei nove anos, a Titi mandou-me fazer camisas, um fato de pano preto, e colocou-me, como interno, no colégio dos Isidoros, então em Santa Isabel.
Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz, Crispim, mais crescido que eu, filho da firma Teles, Crispim & Cia. donos da fábrica de fiação à Pampulha. O Crispim ajudava à missa aos domingos; e, de joelhos, com os seus cabelos compridos e louros, lembrava a suavidade de um anjo. As vezes agarrava-me no corredor e marcava-me a face, que eu tinha feminina e macia, com beijos devoradores; à noite, na sala de estudo, à mesa onde folheávamos os sonolentos dicionários, passava-me bilhetinhos a lápis chamando-me seu idolatrado e prometendo-me caixinhas de penas de aço...

O RIVAL


- Deliciosa torrada! - murmurou o doutor.
- Excelente torrada! - suspirei eu cortesmente.
De vez em quando o Doutor Margaride esfuracava um queixal; depois limpava a face, os dedos; e recomeçava a mastigar devagar, com delicadeza e com religião.
Eu arrisquei outra palavra tímida.
- A Titi, é verdade, tem-me amizade...
- A Titi tem-lhe amizade - atalhou com a boca cheia o magistrado - e você é o seu único parente... Mas a questão é outra, Teodorico. E que você tem um rival.
- Rebento-o! - gritei eu, irresistivelmente, com os olhos em chamas, esmurrando o mármore da mesa.


- Essa expressão é imprópria de um cavalheiro, e de um moço comedido. Em geral não se rebenta ninguém... E além disso o seu rival não é outro, Teodorico, senão Nosso Senhor Jesus Cristo!
Nosso Senhor Jesus Cristo? E só compreendi, quando o esclarecido jurisconsulto, já mais calmo, me revelou que a Titi, ainda no último ano da minha formatura, tencionava deixar a sua fortuna, terras e prédios, a irmandades da sua simpatia e a padres da sua devoção.
- Estou perdido! - murmurei.

O AMOR DE UMA MULHER (a corrigir)


- Para que nada suspeitasse a gente do templo, mesmo na presença deles depositamos o Rabi no túmulo novo, que está no horto de José.(...)Mas, apenas anoitecesse, José e outro, fiel inteiramente, deviam ir buscar o corpo de Jesus, e com as receitas que vêm no livro de Salomão, fazê-lo reviver do desmaio em que o deixou o vinho narcotizado e o sofrimento.(...)
- Depois de amanhã, quando acabar o Sabat, as mulheres de Galiléia voltarão ao sepulcro de José de Ramata, onde deixaram Jesus sepultado... E encontram-no aberto, encontram-no vazio!... "Desapareceu, não está aqui!..." Então Maria de Magdala, crente e apaixonada, irá gritar por Jerusalém - "ressuscitou, ressuscitou!" E assim o amor de uma mulher muda a face do mundo, e dá uma religião mais à humanidade!

207 210

06 - UM BALDE DE ÁGUA SUJA


Depois utilizei o valimento da Titi com os santos seus amigos, o amorosíssimo e perdoador São José, São Luís Gonzaga, tão benévolo para a juventude. Pedia-lhe que fizesse uma petição por certa necessidade minha, secreta e toda pura. Ela acedia, com alacridade; e eu, espreitando pelo reposteiro do oratório, regalava-me de ver a rígida senhora, de joelhos, contas na mão, em súplicas aos patriarcas castíssimos, para que a Adélia me desse outra vez a beijoquinha na orelha.


Uma noite, cedo, fui experimentar se o céu escutara tão valiosas preces. Cheguei à porta da Adélia; e bati, tremendo todo, uma argoladinha humilde. O Senhor Adelino assomou à janela, em mangas de camisa.
- Sou eu, Senhor Adelino - murmurei abjetamente e tirando o chapéu. - Queria falar à Adeliazinha.
Ele rosnou para dentro, para a alcova, o meu nome. Creio mesmo que disse o carola. E lá do fundo, dentre os cortinados, onde eu a pressentia toda desalinhada e formosa, a minha Adélia gritou com furor:
- Atira-lhe para cima dos lombos o balde da água suja!
Fugi.


pg 54

34a - ESCORRAÇADO


Rolei para o quarto, tombei no leito, esbarrondado. Um rumor de escândalo acordara o casarão severo. E a Vicência surgiu diante de mim, enfiada, com o seu avental branco na mão:
- Menino! Menino! A senhora manda dizer que saia imediatamente para o meio da rua, que o não quer nem mais um instante em casa... E diz que pode levar a sua roupa branca e todas as suas porcarias!
Despedido!
Ergui a face mole da travesseira de rendas. E a Vicência, atontada, torcendo o avental:
- Ai, menino! Ai, menino! se não sai já para a rua, a senhora diz que manda chamar um polícia!
Escorraçado!



pg 254

36 - O ÓCULO (a corrigir)


Acendi uma vela. Com áspera amargura tomei o óculo, abri a vidraça - e olhei por ele, como da borda de uma nau que vai perdida nas águas. Sim, muito sagazmente o afirmara Justino, a asquerosa Patrocínio deixava-me o óculo com rancoroso sarcasmo - para eu ver através dele o resto da herança! E eu via, apesar da escura noite, nitidamente via o Senhor dos Passos, sumindo os maços de inscrições dentro da sua túnica roxa, o Casimiro, tocando com as mãos moribundas os lavores das pratas, espalhadas sobre o seu leito; e o vilíssimo Negrão, de casaco de cotim e galochas, passeando regalado à beira da água, sob os olmos do Mosteiro! E eu ali, com o óculo!

pg 263

32b - REGRESSO A LISBOA


Duas semanas depois, rolando na tipóia do Pingalho pelo Campo de Santana, com a portinhola entreaberta e a bota estendida para o estribo, avistei entre as árvores sem folhas o portão negro da casa da Titi! E, dentro desse duro calhambeque, eu resplandecia mais que um gordo César, coroado de folhagens de ouro, sobre o seu vasto carro, voltando de domar povos e deuses.

pg 233

02 - ADÉLIA





Munidos de um cartucho de pastéis e de uma garrafa de Madeira, encontramos a Ernestina a coser um elástico nas suas botinas de duraque. E a Adélia, estendida num sofá, de chambre e em saia branca, com os chinelos caídos no tapete, fumava um cigarro lânguido. Eu sentei-me ao lado dela, comovido e mono, com o meu guarda-chuva entre os joelhos. Só quando o Silvério e a Ernestina correram dentro à cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar à Adélia, corando:
- Então a menina de onde é?
Era de Lamego.

pg 28

04 - AGASALHA-TE RIQUINHO



Agora, à noitinha (enquanto Eleutério, no clube da Rua Nova-do-Carmo, jogava a manilha), eu tinha ali na alcova da Adélia a radiante festa da minha vida. Levara para lá um par de chinelas, era o eleito do seu seio. As nove e meia, despenteada, envolta à pressa num roupão de flanela, com os pés nus, acompanhava-me pela escadinha de trás, colhendo em cada degrau, nos meus lábios, um beijo lento e saudoso.
- Adeus, Delinha!
- Agasalha-te, riquinho!
pg 24-25

38 - A CORAGEM DE AFIRMAR


Agora, pai, comendador, proprietário, eu tinha uma compreensão mais positiva da vida; e sentia bem que fora esbulhado dos contos de G. Godinho simplesmente por me ter faltado no oratório da Titi - a coragem de afirmar!


Sim! Quando em vez de uma coroa de martírio aparecera, sobre o altar da Titi, uma camisa de pecado - eu deveria ter gritado, com segurança: "Eis aí a relíquia! Quis fazer a surpresa... Não é a coroa de espinhos. E melhor! E a camisa de Santa Maria Madalena!... Deu-ma ela no deserto..."(...) E quem o duvidaria?


(...) houve um momento em que me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao céu - cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.
pg 273 a 275

15 - PIOR QUE BRAGA



Por cima pesava o céu pardacento. E assim da minha janela me aparecia a velha Sião, a bem edificada, brilhante de claridade, alegria da terra, e formosa entre as cidades.
- Isto é um horror, Topsius! Bem dizia o Alpedrinha! Isto é pior que Braga, Topsius! E nem um passeio, nem um bilhar, nem um teatro! Nada! Olha que cidade para viver Nosso Senhor!
- Sim! No tempo dele era mais divertida - resmungou o meu sapiente amigo.

pg 91

37 - D. JESUÍNA



Assim eu conheci a irmã da firma. Chamava-se D. Jesuína; tinha trinta e dous anos e era zarolha. Mas, desde esse domingo de rio e de campo, a riqueza dos seus cabelos ruivos como os de Eva, o seu peito sólido e suculento, a sua pele cor de maçã madura, o riso são dos seus dentes claros - tornavam-me pensativo, quando à tardinha, com o meu charuto, eu recolhia à Baixa pelo Aterro, olhando os mastros das faluas...
Fora educada nas Salésias; sabia geografia e todos os rios da China; sabia história e todos os reis de França; e chamava-me Teodorico-Coração-de-Leão, por eu ter ido à Palestina.

pg 271

26 - MULHERES NO SANTO ADRO


Mas o santo adro resplandecia de mulheres; e meus olhos bem depressa deixaram metais e mármores, para cativadamente se prenderem àquelas filhas de Jerusalém, cheias de graça e morenas como as tendas do Cedar! Todas traziam no templo o rosto descoberto; ou apenas um fofo véu, de uma musselina leve como ar, à moda romana, enrodilhado finamente no turbante, punha em torno das faces uma alvura de espuma, onde os olhos negros tomavam um quebranto mais úmido, enlanguescidos pelas densas pestanas, alongados pela tintura de cipro. (...) E sobre todas o meu desejo zumbia - como uma abelha que hesita entre flores de igual doçura!
- Ai Topsius, Topsius! - rosnava eu. - Que mulheres! Que mulheres! Eu estouro, esclarecido amigo!

15A - CIBELE (a corrigir)



"Caramba, Topsius, que grande mulher!"
Grande, em verdade! Sólida e saudável como eu; branca, da alvura do linho muito lavado, e picada de sardas; coroada por uma massa ardente de cabelo ondeado e castanho; presa num vestido de sarja azul que os seios rijos quase faziam estalar, ela entrou, derramando um fresco cheiro de sabão Windsor e de água-de-colônia, e logo alumiou todo o refeitório com o esplendor da sua carne e da sua mocidade... O fecundo Topsius comparou-a à fortíssima deusa Cibele.
Cibele sentou-se no topo da mesa, serena e soberba. Ao lado, fazendo ranger a cadeira com o peso dos seus amplos membros, acomodou-se um Hércules tranqüilo, calvo, de espessas barbas grisalhas - que, no mero gesto de desdobrar o guardanapo, revelou a onipotência do dinheiro e o envelhecido hábito de mandar.

pg 92

14 - A CARAVANA




O alegríssimo Pote depressa organizou a nossa caravana para a cidade do Senhor. Um macho levava as bagagens; o arrieiro árabe, embrulhado num farrapo azul, era tão airoso e lindo que eu, irresistivelmente e sem cessar, procurava o negro afago do seu olhar de veludo; e, por luxo oriental, como escolta, seguia-nos um beduíno, velho, catarroso, com o albornoz de lã de camelo listrado de cinzento, e uma forte lança ferrugenta toda enfeitada de borlas.
Guardei num alforje, desveladamente, o embrulhinho mimoso da camisinha de Mary; depois, já na sela, alongados os loros do pernudo Topsius, o festivo Pote, floreando o chicote, lançou o antigo grito das Cruzadas e de Ricardo-Coração-de-Leão - Avante, a Jerusalém; Deus o quer! E a trote, com os charutos em brasa, saímos de Jafa pela porta do Mercado - à hora em que suavemente tocava a vésperas no Hospício dos Padres Latinos.


pg 88

SIM TITI



- Esta é a Titi - disse-me o Senhor Matias. - E necessário gostar muito da Titi... E necessário dizer sempre que sim à Titi!
Lentamente, a custo, ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, de uma frialdade de pedra; e logo a Titi recuou, enojada.
- Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo!
Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ela, murmurei:
- Sim, Titi.

32a - DESPEDIDA DE TOPSIUS



De manhã, o fiel e douto Topsius veio, de galochas, acompanhar-me ao barracão da alfândega. Enlacei-o longamente nos braços trêmulos:
- Adeus, companheiro, adeus! Escreva... Campo de Santana, 47...
Ele murmurou, estreitado comigo:
- Aqueles trinta mil-réis, lá mandarei...
Apertei-o generosamente, para abafar essa explicação de pecúnia. Depois, já com a bota na proa do bote que me ia levar ao Cid Campeador:
- Então, posso dizer à Titi que a coroazinha de espinhos é a mesma...
Ele ergueu as mãos, solene como um pontífice do saber:
- Pode dizer-lhe em meu nome que foi a mesmíssima, espinho por espinho...

pg 231

POTE


Quando me voltei, Topsius, à sombra do seu guarda-sol, conversava com o homem prestante, que foi nosso guia através das terras da Escritura. Era moço, moreno, espigado, com longos bigodes esvoaçando ao vento; usava jaqueta de veludilho e botas brancas de montar; as coronhas prateadas de duas pistolas, emergindo de uma faixa de lã negra, armavam-lhe heroicamente o peito forte; e trazia amarrado na cabeça, com as pontas e as franjas atiradas para trás, um lenço rutilante de seda amarela. O seu nome era Paulo Pote; a sua pátria o Montenegro; e toda a costa da Síria o conhecia pelo alegre Pote. Jesus, que alegre matalote! A alegria faiscava-lhe na pupila azul-clara; a alegria cantava-lhe nos dentes incomparáveis; a alegria estremecia-lhe nas mãos buliçosas; a alegria ressoava-lhe no bater dos tacões. Desde Áscalon até aos bazares de Damasco, desde o Carmelo até aos pomares de Engada - ele era o alegre Pote.

25 - JESUS



(...)Jesus estava de pé, com as mãos cruzadas e frouxamente ligadas por uma corda que rojava no chão. Um largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azuis, cobria-o até aos pés, calçados de sandálias já gastas pelos caminhos do deserto e atadas com correias. Não lhe ensanguentava a cabeça essa coroa inumana de espinhos, de que eu lera nos Evangelhos; tinha um turbante branco, feito de uma longa faixa de linho enrolada, cujas pontas lhe pendiam de cada lado sobre os ombros; um cordel amarrava-lho por baixo da barba encaracolada e aguda. Os cabelos secos, passados por trás das orelhas, caíam-lhe em anéis pelas costas; e no rosto magro, requeimado, sobre sobrancelhas densas, unidas num só traço, negrejava com uma profundidade infinita o resplendor dos seus olhos. Não se movia, forte e sereno diante do pretor.

p155

31 - ALPEDRINHA


E já no Caimão, debruçado na amurada, ainda o avistei imóvel sobre as pedras do molhe, segurando com as mãos, contra a brisa salgada, o seu vasto turbante branco.
Desventuroso Alpedrinha! Só eu, em verdade, compreendi a tua grandeza! Tu eras o derradeiro lusíada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos varões fortes que iam nas armadas à Índia! A mesma sede divina do desconhecido te levara, como eles, para essa terra de oriente, de onde sobem ao céu os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei. Somente não tendo já, como os velhos lusíadas, crenças heróicas concebendo empresas heróicas, tu não vais como eles, com um grande rosário e com uma grande espada, impor às gentes estranhas o teu rei e o teu Deus. Já não tens Deus por quem se combata, Alpedrinha! Nem rei por quem se navegue, Alpedrinha!... Por isso, entre os povos do Oriente, te gastas nas ocupações únicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos modernos lusíadas - descansar encostado às esquinas, ou tristemente carregar fardos alheios...

pg 228-229

30 - A TRAIÇÃO DO ALPEDRINHA (a corrigir)


E, com um suspiro, (Alpedrinha) atroou o Hotel de Josafate. Perante este ai, repassado de tormento e de paixão, relampejou-me na alma uma suspeita abominável.
- Alpedrinha, tu suspiraste! Aqui há perfídia, Alpedrinha!


Ele baixou a fronte tão contritamente que o turbante lasso rolou nos ladrilhos. E antes que ele o levantasse já eu lhe empolgara com sanha o braço mole.
- Alpedrinha, escarra a verdade! A Maricoquinhas, hem? Também petiscaste?
A minha face barbuda chamejava... Mas Alpedrinha era meridional, das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho. O medo cedeu à vaidade, e revirando para mim o bugalho branco do olho:
- Também petisquei!


Sacudi-lhe o braço para longe, cheio de furor e de nojo. Também aquela - com aquele! Oh, a Terra! A Terra! Que é ela se não um montão de cousas podres, rolando pelos céus com basófias de astro?
- E dize lá, Alpedrinha, dize lá, também te deu uma camisa?
- A mim um chambrezinho...

pg 227

33 - JUSTINO



Lentamente, o bom Justino, com a sua chávena fornecida de bolos, acercara-se da janela, como a espreitar o céu estrelado e dentre as franjas das cortinas os seus olhinhos luzidios e gulosos chamavam-me confidencialmente. Fui, trauteando o Bendito; ambos mergulhamos na sombra dos damascos; e o virtuoso tabelião, roçando o lábio pelas minhas barbas:
- Oh amiginho, e de mulheres?
Eu confiava no Justino. Segredei para dentro do seu colarinho: - De deixarem lá os miolos, Justininho!
As suas pupilas faiscaram como as de um gato em janeiro; a xícara ficou-lhe tremelicando na mão.


pg 248 -249

08 - ERA DE TRANCOSO E DESGRAÇADO



E logo, do canto, um moço magro e murcho, murmurou, suspirando e a desfalecer:
- Em o cavalheiro necessitando alguma cousa, chame pelo Alpedrinha.
Um patrício! Ele contou-me a sua sombria história, desafivelando a minha maleta. Era de Trancoso e desgraçado. Tivera estudos; compusera um necrológio; sabia ainda mesmo de cor os versos mais doloridos do "nosso Soares de Passos". Mas apenas sua mamazinha morrera, tendo herdado terras, correra à fatal Lisboa, a gozar; conheceu logo na Travessa da Conceição uma espanhola deleitosíssima, do adocicado nome de Dulce; e largou com ela para Madri, num idílio. Aí o jogo empobreceu-o; a Dulce traiu-o; um chulo esfaqueou-o. Curado e macilento passou a Marselha; e durante anos arrastou-se, como um frangalho social, através de misérias inenarráveis. Foi sacristão em Roma. Foi barbeiro em Atenas. Na Moréia, habitando uma choça junto a um pântano, empregara-se na pavorosa pesca das sanguessugas; e de turbante, com odres negros ao ombro, apregoou água pelas vielas de Esmirna. O fecundo Egito atraíra-o sempre, irresistivelmente... E ali estava no Hotel das Pirâmides, moço de bagagens e triste.

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ADÉLIA NA CRUZ


à noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne, quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se lascivos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dous esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa na ponta; e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!

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